domingo, 4 de julho de 2010

A ralé brasileira


Jessé Souza é coordenador do Centro de Pesquisa sobre Desigualdade Social da Universidade Federal de Juiz de Fora e, com André Grillo e outros, lançou recentemente o livro A ralé brasileira: quem é e como vive (Belo Horizonte: Ed. UFMG), em que estuda as características dessa “parcela da população que vive como subgente”. Confira seus argumentos a seguir:

Diversos estudos mostram que a proporção de brasileiros vivendo abaixo da linha de miséria caiu 43% desde 2003. Em seu último livro, o senhor diz ser falsa a tese de que a desigualdade brasileira está desaparecendo. Por quê?

Em primeiro lugar há que se dizer que esses números são expressivos e refletem tanto o efeito do recente crescimento da economia brasileira, quanto, também, o sucesso inegável de diversas políticas sociais do atual governo. Os índices que demonstram recuo na miséria ou pobreza a partir de um patamar absoluto de renda, dizem, no entanto, apenas que a pobreza absoluta diminuiu. A desigualdade é um conceito relacional e diz respeito à distância — no nosso caso o abismo — entre as diversas classes sociais que disputam recursos escassos em uma sociedade dada. Existe aqui, portanto, o risco de que o “fetiche do número” encubra o principal.

O principal é que o Brasil é uma das sociedades complexas mais desiguais do planeta, porque entre 30% a 40% de sua população têm inserção precária tanto no mercado quanto na esfera pública. Existe toda uma “classe social”, nunca percebida enquanto tal no debate público — a não ser fragmentariamente enquanto temas soltos e sem relação entre si como “violência”, “desqualificação da mão de obra”, “insegurança pública”, “repetência escolar”, “criminalidade”, “transporte público”, “saúde pública”, etc. — que tende a reproduzir sua precariedade indefinidamente. Imaginam-se 500 problemas para não se ver o único problema efetivo que é a raiz e o núcleo de todos os outros. Fragmenta-se indevidamente a realidade e confundem-se as hierarquias das questões para não se ver o óbvio: que somos uma sociedade altamente conservadora e perversa que aceita conviver com uma porção significativa da sua população vivendo como “subgente”, com empregos precários e sem articulação política de seus interesses.

É esse fato, e não nenhum outro, o que verdadeiramente nos separa das sociedades política e moralmente mais avançadas do chamado “primeiro mundo”. Essa classe social, que chamamos provocativamente de “ralé”, num pais que eufemiza, nega e jamais discute seus conflitos de frente, é a mão de obra barata a serviço das classes média e alta que podem — contando com o exército de empregadas, faxineiras, moto-boys, porteiros, zeladores, carregadores, babás e prostitutas, para o serviço pesado e desvalorizado — se dedicar às ocupações rentáveis e com alto retorno em prestígio e reconhecimento. É isso que chamo de “desigualdade abissal” como nosso problema central. Os outros são “nuvens de fumaça” para que não se perceba o que é importante e o que hierarquicamente deveria vir primeiro.


Para ler a entrevista na íntegra:

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