segunda-feira, 31 de maio de 2010

Poesia numa hora dessas?!






A TORRE SEM DEGRAUS
(Carlos Drummond de Andrade)


No térreo se arrastam possuidores de coisas recoisificadas.

No 1.° andar vivem depositários de pequenas convicções, mirando-as, remirando-as com lentes de contato.

No 2.° andar vivem negadores de pequenas convicções, pequeninos eles mesmos.

No 3.° andar - tlás tlás – a noite cria morcegos.

No 4.°, no 7.°, vivem amorosos sem amor, desamorando.

No 5.°, alguém semeou de pregos dentes de feras cacos de espelho a pista encerada para o baile de debutantes de 1848.

No 6.°, rumina-se política na certeza-esperança de que a ordem precisa mudar deve mudar há de mudar, contanto que não se mova um alfinete para isso.

No 8.°, ao abandono, 255 cartas registradas não abertas selam o mistério da expedição dizimada por índios Anfika.

No 9.°, cochilam filósofos observados por apoftegmas que não chegam a conclusão plausível.

No 10.°, o rei instala seu gabinete secreto e esconde a coroa de crisóprasos na terrina.

No 11.°, moram (namoram?) virgens contidas em cinto de castidades.

No 12.°, o aquário de peixes fosforecentes ilumina do teto a poltrona de um cego de nascença.

Atenção, 13.°. Do 24.° baixará às 23h um pelotão para ocupar-te e flitar a bomba suja, de que te dizes depositário.

No 15.°, o último leitor de Dante, o último de Cervantes, o último de Musil, o último do Diário Oficial dizem adeus à palavra impressa.

No 16.°, agricultores protestam contra a fusão de sementes que faz nascerem cereais invertidos e o milho produzir crianças.

No 17.°, preparam-se orações de sapiência, tratados internacionais, bulas de antibióticos.

Não se sabe o que aconteceu ao 18.°, suprimido da Torre.

No 19.° profetas do Antigo Testamento conferem profecias no computador analógico.

No 20.°, Cacex Otan Emfa Joc Juc Fronap FBI Usaid Cafesp Alalc Eximbanc trocam de letras, viram Xfp, Jjs, IxxU e que sei mais.

No 22;°, banqueiros incineram duplicatas vencidas, e das cinzas nascem novas duplicatas.

No 23.°, celebra-se o rito do boi manso, que de tão manso ganhou biograifa e auréola.

No 24.°, vide 13.°.

No 25.°, que fazes tu, morcego do 3.°? que fazes tu, miss adormecida na passarela?

No 26.°., nossas sombras despregadas dos corpos passseiam devagar, cumprimentando-se.

O 27.° é uma clínica de nervosos dirigida por general-médico reformado, e em que aos sábados todos se curam para adoecer de novo na segunda-feira.

Do 28.° saem boatos de revolução e cruzam com outros de contrarrevolução.

Impróprio a qualquer uso que não seja o prazer, o 29.° foi declarado inabitável.

Excesso de lotação no 30.°: moradores só podem usar um olho, uma perna, meias palavras.

No 31.°, a Lei afia seu arsenal de espadas inofensivas, e magistrados cobrem-se com cinzas de ovelhas sacrificadas.

No 32.°, a Guerra dos 100 Anos continua objeto de análise apuradíssima.

No 33.°, um homem pede pra ser crucificado e não lhe prestam atenção.

No 34.°, um ladrão sem ter o que roubar rouba o seu próprio relógio.

No 35.°, queixam-se da monotonia deste poema e esquecem-se da monotonia da Torre e das queixas.

Um mosquito é, no 36.°, único sobrevivente do que foi outrora residência movimentada com jantares óperas pavões.

No 37.°, a canção

 Fiorela amarlina
 lousileno i flanura
 meliglírio omoldana
 plunigiário olanin.

No 38.°, o parlamento sem voz, admitido por todos os regimes, exercita-se na mímica de orações.

No 39.°, a celebração ecumênica dos anjos da luz e dos anjos da treva, sob a presidência de um meirinho surdo.

No 40.°, só há uma porta uma porta uma porta.

Que se abre para o 41.°, deixando passar esqueletos algemados e conduzidos por fiscais do Imposto de Consciência.

No 42.°, goteiras formam um lago onde bóiam ninféias, e ninfetas executam bailados quentes.

No 43.°, no 44.°, no... (continua indefinidamente).

Um comentário:

Anônimo disse...

Que preciosidade!!!
Abr,
Norma