segunda-feira, 10 de maio de 2010

Núcleo Setorial: Cultura

Uma das mais evidentes e profundas marcas da literatura do tcheco Franz Kafka (1983-1924) é a sua capacidade de causar assombro. A força das suas descrições gestuais e a teatralidade do gesto corporal estão associadas a uma desmontagem  devastadora do mito como elemento instaurador da justiça. Paradoxalmente, a busca da compreensão da Lei e da Justiça que se impõe mas não se realizam, levam os seus leitores à identificação e ao   estranhamento.  Abaixo, três textos curtos que tratam dos segredos dos deuses, do conhecimento sobre o inexplicável nos homens e do outro que subjaz em todo eu. 

PROMETEU

Há quatro lendas referentes a Prometeu:
- de acordo com a primeira, ele foi amarrado a um penhasco no Cáucaso por ter revelado aos homens os segredos dos deuses, e os deuses enviaram águias que se alimentavam de seu fígado, perpetuamente renovado;
- de acordo com a segunda, Prometeu, angustiado pela dor que lhe causavam as incessantes bicadas das águias, recostou-se cada vez mais sobre o penhasco, a ponto de tornar-se parte dele;
- de acordo com a terceira, sua inconfidência foi esquecida ao cabo de milhares de anos, assim como também os deuses, as águias, e ele próprio;
- de acordo com a quarta, todos acabaram por se enfadar com histórias tão sem sentido. Os deuses cansaram, as águias cansaram, a ferida se cansou - e cicatrizou normalmente.

Restou, apenas, a massa inexplicável do penhasco. A lenda tentou explicar o inexplicável. Como ele teve origem num elemento de verdade, teria mesmo que acabar no inexplicável.


*   *   *

Tudo o que ele faz parece-lhe, em verdade, extraordinariamente novo, mas, sendo de tal ordem a enxurrada de coisas novas, também extraordinariamente amadorístico e bem pouco tolerável, incapaz de marcar a história, de abreviar a seqüência das gerações, de pela primeira vez cortar fundo no âmago da harmonia do mundo que, antes dele, podia ser pelo menos imaginada. Em sua arrogância, ele às vezes se sente mais ansioso quanto ao mundo do que quanto a si próprio.

*   *   *

Ele se sente prisioneiro neste mundo, sente-se oprimido. A melancolia, a impotência, as enfermidades e as fantasias alucinadas dos detidos o afligem. Não há conforto que o conforte, pois seria apenas um consolo, um analgésico que tentasse atenuar a realidade brutal de seu cativeiro. Mas se se lhe pergunta o que é que realmente deseja, não tem resposta a dar, pois - e essa é uma de suas convicções mais fortes - ele não tem idéia do que seja liberdade.

(tradução de Ênio Silveira em KAFKA, F. Contos, Fábulas e Aforismos. Editora Civilização Brasilera)

Um comentário:

Gustavo Carvalho disse...

Uma das características do gênio artístico é sua irredutibilidade a esquemas explicativos e classificatórios. No caso de Kafka isso chega ao limiar de uma coerência filosófico-existencial. O que parece ser uma especial habilidade de se sustentar no abismo de modo irônico e denunciar o trágico dissimulando-o. Na verdade parece querer criar uma nova mística... No aforismo DECISÕES encontramos:

"Mesmo com deliberada energia deve ser fácil levantar-se de um estado miserável. (...)
Mas ainda que seja assim, a cada erro, que não pode faltar, tudo -- o fácil e o difícil -- vai ficar paralisado e eu precisarei girar e
voltar ao ponto de partida.
Por isso o mais aconselhável de fato é aceitar tudo, comportar-se de modo inerte e no caso de sentir atirado longe por um sopro, não se deixar seduzir por nenhum passo desnecessário, fitar o outro com olhos de animal, não sentir remorso, em suma: esmagar com a própria mão tudo o que na vida ainda resta de espectro, ou seja, aumentar a última calma sepulcral e não permitir que mais nada exista fora dela.
Um movimento característico desse estado é passar o dedo mínimo por cima das sobrancelhas."