domingo, 5 de dezembro de 2010

Rio, drogas e violência

"As cenas de guerra no Rio de Janeiro evocam as soluções fáceis de sempre: colocar as Forças Armadas no morro até prender o último traficante (a favorita da direita) e descriminalizar as drogas (a campeã da esquerda).
Não discordo inteiramente. Acho que lugar de bandido perigoso é a cadeia mesmo e defendo a legalização de todos os entorpecentes. Receio, contudo, que, nenhuma dessas medidas, isoladamente ou mesmo em conjunto, constitua solução rápida para o problema da violência urbana, no Rio ou em qualquer outra cidade do país.
Em relação aos traficantes, o que temos é basicamente um problema de mercado. Estudo acadêmico citado na Folha de domingo estima que a indústria da droga empregue 16 mil pessoas na cidade do Rio de Janeiro (mais do que a Petrobras) e movimente R$ 633 milhões anuais (mais do que o setor têxtil no Estado).
A menos que, num passe de mágica, eliminássemos toda a demanda, para cada FB preso, surgirão três ou quatro jovens candidatos a substituí-lo. Muito provavelmente disputarão o posto à bala, tornando a situação ainda mais perigosa em alguns pontos estratégicos da cidade. A própria existência de milícias não é senão uma tentativa de certos membros de nossas valorosas polícias de morder um naco desse mercado.
Vale lembrar que, embora as autoridades paulistas o neguem até a morte, alguns estudiosos como a socióloga Camila Nunes Dias sustentam que um dos fatores que trouxeram relativa paz a São Paulo foi a unificação do comando do tráfico sob o PCC. A centralização não apenas acabou com as rixas entre criminosos como ainda impôs um rígido código de conduta aos bandidos. Quem cria confusão de graça é severamente punido.
Uma solução bastante cínica, portanto, seria ajudar alguma das organizações que disputam o tráfico no Rio a açambarcar o mercado, monopolizando o setor. A violência aparente, que é a percebida pela população, provavelmente se reduziria. O problema é que isso quase certamente agravaria um outro efeito pernicioso do tráfico, que é sua infiltração nas estruturas do Estado. Aqui, a ameaça ganha ares institucionais.
Os cartéis de drogas têm, como toda megacorporação, interesses a defender. A diferença entre os traficantes e executivos de grandes empresas é que os primeiros não precisam nem parecer que cumprem as leis. Enquanto uma multinacional contrata firmas de lobby e assessorias de imprensa na esperança de influenciar políticos e jornalistas, os cartéis simplesmente corrompem autoridades. Quem recusar a oferta pode ser eliminado.
O risco que o narcotráfico traz para a democracia foi uma das razões que levaram o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e seus colegas César Gaviria (Colômbia) e Ernesto Zedillo (México) a fundar a Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia, que defende o fim da 'guerra contra as drogas' e mudanças paulatinas rumo à legalização. (É incrível como ex-autoridades passam a ver as coisas com clareza depois que deixam seus cargos).
Isso significa que a saída é o 'liberou geral'? Sim e não. Se o que você deseja é um sistema minimamente racional para lidar com a questão das drogas, a resposta é afirmativa. Se seu objetivo é apenas reduzir a violência no curto prazo, então, a legalização não resolve muito.
Como já escrevi antes neste espaço, é até possível que, num horizonte de tempo mais dilatado, uma eventual legalização diminua os lucros e, consequentemente, o poder de fogo das quadrilhas, mas, no curto prazo, seria mais realista esperar um aguçamento dos crimes bárbaros.
A venda de cocaína e assemelhados não é exatamente uma vocação para jovens talentosos. Se a legalização ocorresse amanhã, é muito pouco provável que os traficantes de hoje vestissem uma gravata e se convertessem em respeitáveis homens de negócios.
Privados do lucro fácil das drogas --a única modalidade criminosa na qual as supostas vítimas (os usuários) fazem fila para ser voluntariamente 'prejudicadas'--, é quase certo que os integrantes do exército do tráfico se lançariam com fúria redobrada na consecução de delitos realmente violentos, como assaltos e sequestros, para os quais as vítimas não costumam fazer fila.
A grande verdade é que não existe solução para o problema das drogas. O mundo não é um paraíso idílico; ao contrário, é um lugar cheio de perigos, que incluem várias centenas de substâncias psicoativas pelas quais nossos cérebros pessimamente projetados têm uma fraqueza muitas vezes fatal. Não está no poder de nenhuma lei modificar essa realidade bioquímica. Pelo menos com o atual nível de tecnologia médica, só o que a sociedade pode fazer é tentar modular as repercussões desse indesejável pendor humano.
E o meu receio é o de que a linha proibicionista adotada ao longo do último século mais acrescenta do que subtrai dificuldades. A principal delas é que se trata de um contrassenso econômico. Investimos alguns bilhões de dólares por ano na repressão, cujo principal efeito é elevar o preço da droga, ampliando as margens de lucro e, assim, o poder de aliciamento dos traficantes. Como se não bastasse, na outra ponta ainda gastamos mais alguns bilhões em tratamento médico para os dependentes (aí também incluídos os usuários crônicos de tabaco e álcool).
O pressuposto é o de que, sem a proibição e a repressão, a prevalência do uso de drogas ilícitas seria significativamente maior. É difícil discordar. A oferta mais livre de substâncias viciantes tende a aumentar o número de pessoas que as experimentam e, por conseguinte, a fração dos que desenvolvem dependência química. O tamanho preciso dessa encrenca, entretanto, permanece uma incógnita. Como nenhum país experimentou ainda a legalização, não se tem a menor ideia de quanto a prevalência aumentaria.
Há aqui duas 'escolas' de pensamento. Para os que tendem a reforçar o aspecto bioquímico do fenômeno, não há limite para o vício. Se submetermos uma dada população de ratos a um regime de ingestão forçada de cocaína ou álcool, teremos, ao cabo de poucas semanas de uso contínuo, 100% de dependentes, que experimentarão tolerância, 'craving', síndrome de abstinência na retirada e demais sintomas clássicos.
Só que nem o mais entusiasta proponente da legalização está sugerindo que heroína seja despejada em nossos reservatórios de água. Há uma grande diferença entre permitir e obrigar. E, ao longo de centenas de milhares de anos, ocorreram inúmeros experimentos naturais de exposição de humanos a drogas. Até onde se sabe, por mais abundante que fosse a oferta, foi sempre uma minoria da população a que teve problemas mais sérios de dependência. Há quem sustente que, em condições 'naturais' (isto é, sem um cientista para entuchar cachaça e pó nas pobres cobaias), a predisposição para o vício resulta de uma interação entre as propriedades bioquímicas das substâncias e a personalidade do indivíduo que as utiliza. Nesse caso, a legalização não implicaria necessariamente uma explosão apocalíptica no número de viciados. As pessoas com propensão mais acentuada para a dependência já 'militam', seja no mercado legal, como alcoólatras, seja no ilegal, ou mesmo misturando um pouco de tudo. O incentivo ao consumo proporcionado pela legalização atingiria mais a população não tão afeita à dependência.
Há aqui um 'caveat'. A exemplo do que ocorreu com o álcool quando descobrimos o processo de destilação no século 12, inovações químicas têm tornado as drogas ilícitas bem mais poderosas do que eram no passado. Assim como o alcoolismo se tornou um problema mais grave com o advento do uísque, da vodca, da cachaça e de todas as bebidas destiladas, as novas variedades de maconha e as drogas sintéticas podem estar driblando os mecanismos naturais de defesa que o cérebro tem contra o vício. Embora nós não os conheçamos bem, eles existem. Acho que estamos há algumas décadas focando o elemento errado. A pergunta-chave não é por que as pessoas se viciam, mas sim por que a maioria dos humanos não sucumbe às drogas. Mesmo a mais prevalente delas, o tabaco, nunca escravizou mais de 30% da população adulta de um país.
É claro que, para uma estratégia de legalização parar em pé, ela precisa observar certas precondições da racionalidade que nem sempre são colocadas abertamente. Em primeiro lugar, é preciso que seja uma política ampla, que abranja todas as drogas e não apenas as preferidas pelos filhos da classe média influente. O 'statu quo' não muda se liberarmos a maconha, mas mantivermos a cocaína e a heroína proibidas.
É necessário ainda que as substâncias sejam efetivamente legalizadas e não apenas toleradas. Isso implica a criação de empresas que explorem a atividade, a abertura de pontos de venda e o recolhimento de tributos. Eu, de minha parte, criaria a Narcobrás. Aqui, as ineficiências típicas do setor estatal adquiririam uma virtude pública.
Evidentemente, nenhuma dessas ponderações é sólida o bastante para basearmos uma política nacional para as drogas, mas elas são suficientes para pelo menos questionarmos o automatismo das posições proibicionistas. Eu mesmo tenho dúvida em relação a vários pontos: será que não é melhor seguir fingindo que vivemos num mundo legal e que as leis nos protegem do mal que ronda lá fora? Se concluirmos pela legalização, devemos proceder de uma vez ou tateando, de modo a não criar nenhuma situação muito irreversível? Que sinais de alerta consideraríamos necessários para eventualmente rever a estratégia? Qual carga de impostos devemos estabelecer sobre esses produtos?
O que me faz pender definitivamente para o lado da legalidade não são as considerações epidemiológicas, mas a convicção filosófica de que existem limites para o poder de interferência do Estado sobre o cidadão. Nem eu nem ninguém que acredita um pouquinho na razão tomaria parte num contrato social no qual renunciaria a decidir o que pode ou não ingerir. Esse é um direito que, acredito, está no mesmo pacote do da liberdade de ir e vir e de dizer o que pensa.
Voltando à violência no Rio (e no resto do Brasil), tenho uma boa notícia. Não importa muito o que façamos, as coisas vão melhorar. Apesar de atuarem aí inúmeras variáveis, há o fator demográfico que é bem conhecido e extremamente poderoso. Como a esmagadora maioria dos crimes e demais atos de violência é cometida por homens entre 18 e 25 anos (isso vale para qualquer país e qualquer época), o envelhecimento da população, que já está em curso, é quase uma garantia de que todos os indicadores de crime irão cair nas próximas décadas. É claro que prender bandidos e trazer um pouco de racionalidade à questão das drogas ajudariam bastante."

Hélio Schwartsman, 44 anos, é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha.com.
E-mail: helio@uol.com.br
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