segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Os que "defendem a democracia"




Por trás dessa "defesa", há uma mutação; com esses defensores, a democracia não precisa de inimigos


A RETA FINAL desta campanha presidencial talvez seja lembrada como o início de um certo realinhamento da política brasileira. Durante o governo Lula, vimos várias críticas às práticas políticas do consórcio governista. De fato, um dos pontos fracos do governo foi a ausência de vontade política capaz de ultrapassar os vícios institucionais da democracia brasileira, suas negociações obscuras, impronunciáveis, assim como de inaugurar um ciclo de aprofundamento das práticas de participação popular na gestão do Estado.

No entanto, não foram problemas dessa natureza que levaram a oposição a terminar a campanha presidencial vociferando acusações como "fascismo", "igual a Mussolini", "chavismo", "autoritarismo" e "destruidor da liberdade de expressão e da democracia". Uma subida de tom que, provavelmente, não desaparecerá nos próximos anos. Por trás dessa "defesa" da democracia e da liberdade, há uma estranha mutação do sentido das palavras. Isto a ponto de podermos dizer que, com defensores desta natureza, a democracia brasileira não precisa de inimigos.

Por exemplo, eles gostam de dizer que a democracia exige instituições fortes e estáveis, mas normalmente temem qualquer um que lembre que, acima de tudo, a democracia exige poder instituinte soberano e sempre presente.

A democracia nunca temeu modificar e reconstruir instituições que funcionam mal. Poderia arrolar aqui a história da estrutura institucional de países como a França, para ficar em apenas um exemplo.

O fato realmente mortal para a democracia é quando alguns conseguem impor a opinião de que o aumento da visibilidade do poder instituinte, da força da participação popular, é um risco à "normalidade institucional". Tentar desqualificar a discussão sobre a participação popular como "chavismo" é tão tosco quanto dizer que a democracia parlamentar não passa da figura política da gestão do capital.

Por outro lado, acusar o governo de atentar contra a liberdade quando afirma que certos órgãos de imprensa agem como partidos políticos é, isso sim, querer ignorar a natureza do embate democrático.

É absolutamente normal que certos setores da imprensa sejam claramente definidos do ponto de vista ideológico e que tomem posição a partir disso. Da mesma forma, é normal que setores da classe política procurem criticar tais pontos de vista. O governo Barack Obama afirmou, com todas as letras, que a Foxnews agia como um partido político e, nem por isso, foi comparado a Mussolini. Não há por que ver algo diferente no caso brasileiro.

Uma certa serenidade a respeito das relações entre mídia e democracia é mais do que necessária atualmente. Contrariamente ao que querem alguns, a imprensa não é responsável por todos os males do país, nem os casos de corrupção foram invenções das Redações. No entanto, discussões sobre avaliação de concessões públicas de meios de comunicação, oligopolização e concentração do mercado de informações, criação de órgãos e conselhos públicos de fiscalização não escondem, necessariamente, a sanha de destruir a liberdade de expressão.

VLADIMIR SAFATLE é professor no departamento de filosofia da USP

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